domingo, 20 de fevereiro de 2011

Rio Grande do Norte: Travestis lutam por respeito e oportunidade de emprego

travesti natal“Meu nome é Rebeca”. “Mas você é menino e eu vou continuar lhe chamando de João”. O diálogo, curto, mas revelador, tem como cenário a cantina da Caern. Rebeca Brandão, de 31 anos – ou João Maria, como está grafado em sua carteira de identidade – tem olhos castanhos claros, cabelos grandes, formas femininas e dois nomes. O muro da Caern é um divisor. No local de trabalho, é chamado pelos colegas de João, apesar de não gostar muito do nome. Já para além dos domínios de sua profissão, não resta dúvidas: “Meu nome é Rebeca”, garante.

Apesar do aparente conflito, não há hostilidade na relação de Rebeca/João com colegas de trabalho e clientes na cantina, onde ela trabalha ajudando na cozinha. Pelo contrário, a convivência estabeleceu uma relação de afeto e todos se respeitam. Mas essa é uma exceção. O cotidiano de travestis, e outras minorias sexuais, é marcado por um embate constante contra o preconceito e a não aceitação. Nesse sentido, a questão do nome é exemplar.

Durante a semana, a governadora Rosalba Ciarlini vetou projeto do deputado Fernando Mineiro (PT), onde os travestis teriam de ser chamados pelo “nome social” em documentos de identificação em repartições públicas. Pelo projeto, João seria  Rebeca. O texto do veto reconhece a importância da lei em “oferecer maior grau de bem-estar social a integrantes de minorias sexuais”, mas afirma ser a lei inconstitucional. Independente de discutir quem está com a razão, é importante perceber como a questão do nome traz embutida uma série de outros constrangimentos aos quais as travestis são expostos no dia-a-dia.

A imagem da* travesti é comumente relacionada à prostituição. Essa ligação tem um pé na realidade: muitas travestis se prostituem. Contudo, esse dado precisa obrigatoriamente ser acompanhado de outro, tão importante quanto. É difícil, para a travesti, encontrar espaço no mercado de trabalho. O preconceito, embora nem sempre explícito, é real. Aquelas que conseguem transpor essa barreira também tem um destino traçado. Com raríssimas exceções, tornam-se cabeleireiras, diaristas e cozinheiras. Rebeca é cozinheira e diarista. Amanda Richelli, 36 anos, é cabeleireira. Mas antes disso. muitas precisou “trabalhar na rua” para sobreviver.

Hoje, Amanda atende em casa, no seu próprio salão de beleza, uma clientela variada. Senhoras de meia idade, moças, rapazes. A relação com os clientes é tranqüila. Mas ela não esconde o passado. Por cerca de 10 anos, recorreu à prostituição. Nesse meio tempo, morou na Itália, onde conseguiu juntar o dinheiro necessário para montar o seu próprio negócio. “Antes disso, eu tentei ser recepcionista, telefonista, trabalhar em loja. Mas, “coincidentemente”, nunca havia vaga. O preconceito é sempre escondido, até porque as pessoas têm medo de travesti”, diz Amanda.

De volta ao Brasil, ela não se furta a freqüentar os mesmos espaços das demais pessoas. “Eles têm que me engolir. Eu vou ao shopping, ao bar, à igreja. Às vezes, escuto umas piadinhas. Quando estou de bom humor, não digo nada. Mas, às vezes, respondo”, declara. Esse é um dado importante. Travestis, e outras minorias, relacionadas ou não com a sexualidade, costumam freqüentar guetos. São bares, boates, enfim, locais públicos onde somente pessoas de determinada “tribo” se encontram. Fora dessas ilhas, a vida nem sempre é fácil. “Na igreja, eu costumo ouvir cochichos, risinhos e ver pessoas apontando. Mas eu sou uma pessoa religiosa e não vou deixar de freqüentar por conta disso”, relata.

Rebeca conta que “costuma sofrer maior assédio em ônibus e no meio da rua”. Ao contrário de Amanda, ela não costuma responder e admite ficar angustiada ao ouvir piadas e ironias quando divide espaço com demais pessoas. Já Amanda conta sentir raiva. “Angústia não. Eu sinto raiva, pena. Sofri bastante para conseguir ser o que eu sou. Em casa, coloquei primeiro um brinco, depois o outro, fui me vestindo. Hoje não tenho problema em ser o que sou. O mundo vai ter que me engolir”, enfatiza.

* Os dicionários mandam utilizar o artigo no masculino quando se trata de “travestis homens”, por ser um substantivo comum de dois gêneros. Contudo, durante as entrevistas, os personagens preferiram ser tratados com artigos no feminino e a reportagem resolveu transpor a preferência para o texto como forma de respeitar essa posição, apesar de ser contrária à regra.

Questão de linguagem
A palavra é um ponto fundamental nessa discussão. Pode parecer um  detalhe, mas não é. Ao longo dos anos, os movimentos sociais que lutam contra o preconceito sexual, empreenderam um esforço para colocar em desuso certas denominações, como é o caso de “homossexualismo”. O termo denota, através do sufixo “ismo”, doença. Em seu lugar foi adotado “homossexualidade”, que expressa comportamento. Dentro desse contexto, ser chamado pelo nome que escolheu é considerado um direito adquirido.

Amanda e Rebeca, por exemplo, além de se vestir como mulheres, têm formas femininas: cabelos compridos e seios, por exemplo. Para isso, fizeram tratamento com hormônios e Rebeca também pôs silicone. Chamá-las pelo nome grafado na carteira de identidade é visivelmente constrangedor. Amanda Richeli sequer revela o nome de batismo. “Tem um apelido que só a minha mãe chama. Ela chama porque é a minha mãe e eu não me incomodo, mas não digo meu nome da carteira de identidade para mais ninguém”, afirma.

Para o professor de Ciências Sociais, Alípio de Sousa Filho, que também é editor da Revista Bagoas, da UFRN, sobre estudos acerca da sexualidade, a possibilidade de ser chamado pelo nome escolhido é a conquista de um direito fundamental. “É condição indigna ser obrigado a portar nome que não coincide com sua identificação social de gênero, a partir de escolha feita pelo próprio indivíduo”, explica Alípio.

Os nomes demarcam um ponto controverso nessa discussão. Afinal, o que se costuma chamar de “orientação sexual” ou “opção sexual” está relacionado à prática sexual, ao gênero, à identidade ou que outra variável? Temos o caso de Rebeca como exemplo. Ela afirma namorar um rapaz de 20 anos. Não é um relacionamento público. Quando perguntada sobre a orientação sexual do seu namorado, Rebeca é taxativa: “Ele é homem, é heterossexual”. O namorado de Rebeca acha a mesma coisa e a opinião dos dois pode causar alguma estranheza.

Como alguém que namora uma travesti pode se considerar heterossexual? - muitos devem perguntar. Segundo Rebeca e Amanda, a situação é mais comum do que parece. “Quando trabalhei na rua, a maior parte dos clientes eram homens com vidas comuns, casados, que queriam  uma mulher com algo mais. Alguns levavam inclusive as suas esposas”, conta Amanda.
A discussão sobre assunto poderia render artigos e mais artigos científicos, discutindo se a orientação sexual é uma questão de identidade (as pessoas são o que sentem ser), de desejo (quem deseja pessoas do mesmo sexo é homo e o contrário hétero) até chegar aos pesquisadores que não vêem sentido em utilizar tantas denominações e conceitos fechados. “Nenhum termo deveria interessar a gays, lésbicas, trans ou heterossexuais como palavras para entender, explicar ou classificar suas vidas, desejos, práticas sexuais. Afinal, nesse âmbito, somente existem o corpo e seus prazeres, e nenhuma palavra serve para explicar nada”, encerra Alípio de Sousa.

fonte: Tribuna do Norte

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