domingo, 11 de outubro de 2009

Paradoxo do Círio de Nazaré, gays da Festa da Chiquita roubam cena nas ruas de Belém

Festa da Chiquita O visitante neófito que chega a Belém do Pará para mais uma edição do Círio de Nazaré acredita a princípio estar na cidade mais religiosa do planeta. Objeto de adoração da festa católica, Nossa Senhora de Nazaré se espalha pela cidade a cada detalhe e em cada canto, em centenas de réplicas, em faixas de saudações, nas preces difundidas pelos alto-falantes, na boca de cada um dos estimados dois milhões de fiéis que peregrinam por Belém seguindo a imagem da santa pelas diversas procissões do segundo fim de semana de outubro.

Tanta devoção precisava ter um antídoto, e tem. Espremida entre duas gigantescas procissões, na madrugada do sábado para o domingo acontece a Festa da Chiquita, celebração de diversidade sexual que lota cada esquadro da grande praça da República, bem aos pés do imponente e tradicionalíssimo Teatro da Paz. O ponto de convergência é um palco de dois andares montado de frente para a avenida Presidente Vargas, um dos pontos-chave do trajeto feito pela santa antes e depois de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, simpatizantes e alguns antipatizantes chacoalharem a praça e a avenida.

Iniciado o ciclo católico, a imagem da santa entra em Belém no sábado pela manhã, de barco, em procissão fluvial pela Baía do Guajará. Na noite do sábado, acontece a trasladação, um "Círio invertido", em que a imagem é levada pelas ruas rumo à Catedral da Sé. Na manhã do domingo, ocorre o Círio propriamente dito: da Sé de volta para a Basílica de Nazaré. Assim que a santa atravessa a Presidente Vargas, por volta das 21h de sábado, o batuque ritual pagão toma conta do palco de luzes instalado ao lado do Teatro da Paz. Quando os fiéis voltam às ruas para o Círio, na madrugada de domingo, a população LGBT ainda está festejando, numa desconcertante mistura musical que inclui sons eletrônicos de boate, o carimbó do grupo tradicional Borboletas do Mar, MPB e muito tecnobrega.

"É o amor se fazendo em carne", celebra o coordenador da Chiquita há 31 anos, Eloi Iglesias, parodiando um dos lemas oficiais do Círio. Cantor profissional, ele inicia a Chiquita cantando Cazuza do alto de uma grua (o "sputgay"), vestido num figurino branco que une motivos carnavalescos, indígenas e de drag queens. "Mãe é mãe, e o resto é vaca", ele provoca, em relação ao slogan governamental-religioso "Pará de todas as Marias. Pelo palco se revezam, ao longo da madrugada, transformistas, DJs de tecnobrega, personalidades locais vencedoras do troféu Veado de Ouro, grupos folclóricos e a paraense honorária Fafá de Belém.

A Chiquita entra em êxtase quando o som na caixa é tecnomelody, uma inventiva panaceia de brega romântico antigo, música eletrônica de boate, jovem guarda, sons caribenhos e electro dos anos 90 e 2000. Após o grito de guerra de Iglesias de que "o brega é nosso!", a massa urra em uníssono refrões de discórdia amorosa como "cabô, cabô, bobeou, dançou/ você vacilou, vai colher tudo que plantou", mas, bem à moda da indústria artesanal que se formou em torno do tecnobrega, ninguém parece saber o nome desse ou daquele autor dos hits. A cantora transformista Roberta Rocha investe numa vertente gay do tecnomelody e sacode a plateia cantando "eu quero dar, eu quero dar, eu quero dar, eu quero dar só pra você/ castanha do Pará".

Mas a mistura vai bem além do tecnobrega - o tecnopop de Lady Gaga faz sucesso nas picapes de DJs anunciados como "o fenômeno LGBT". Iglesias canta Cazuza e Roberto Carlos (este, de "Nossa Senhora" e "Jesus Cristo" a "Amor Perfeito" em versão profana, é onipresente no Círio). A transformista Magda Strass dubla Gal Costa em fase pop brega ("Sou Mais Eu") e uma versão de Claudia para "Ave Maria do Morro", sucesso ancestral de Dalva de Oliveira.

Defendendo preceitos opostos aos da Igreja Católica, a Chiquita permanece incômoda até hoje para as autoridades eclesiásticas, que não a reconhecem como integrante da extensa programação do Círio. Em contrapartida, desde 2004 a festa é reconhecida pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como patrimônio imaterial da cultura brasileira.

O pique de escracho percorre toda a festa, mas tem de conviver com tom de crescente politização. Iglesias e convidados explicam em detalhes o que é homofobia e discorrem sobre as dificuldades vencidas, em confrontos com evangélicos, pelas paradas gays do interior paraense, em cidades como Pirabas, Marudá e Marapari. O coordenador LGBT de uma delas divulga uma marcha ambiental que vai acontecer, pede "um país e um Pará sem racismo nem homofobia" e se emociona: "Tenho orgulho de ser negro e de ser homossexual".

Nos gramados e passarelas da praça da República, a mistura é vertiginosa. Uma faixa pregada às árvores dá o tom: "Baratão das Calcinhas saúda a Virgem de Nazaré". Skatistas de tranças rastafári acompanham shows de reggae em palco à parte. Senhoras de saias comportadas cruzam com "infiéis" de cabelo moicano. Casais heterossexuais passeiam de mãos dadas entre travestis e beijos gays de rapazes musculosos.

Iglesias se irrita com alguma violência avistada do alto do palco e puxa vaias contra os que, mesmo dentro da Chiquita, não entendem o espírito democrático da festa anticatólica (o que não significa que muitos de seus participantes não frequentem igualmente as procissões religiosas). E não suspende jamais as provocações: "Gay é que nem geladeira e fogão, toda casa tem um".

fonte: UOL

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