por Gilberto Scofield Jr.
A decisão do STF de amparar legalmente as uniões homoafetivas estáveis deu a milhares de casais homossexuais do país (e, tenham certeza, eles são bem mais do que os 60 mil detectados pelo Censo do IBGE) acesso a uma centena de direitos até então garantidos somente a casais heterossexuais. Foi histórica a decisão por várias razões: porque fortaleceu a Constituição em seu objetivo superior de igualar direitos e garantir liberdades individuais. Porque reafirmou o princípio da laicidade do Estado, o tempo todo sob a ameaça de um Legislativo sequestrado por parlamentares ligados a igrejas variadas (e que buscam submeter a lei a fundamentos de suas religiões). E porque rompeu com um histórico e hipócrita conservadorismo patriarcal que só enxerga como família a trinca papai-mamãe-filhinho típica dos comerciais de margarina na TV.
Mas que não se iludam os milhões de gays e lésbicas brasileiros: a batalha foi ganha, mas a guerra continua. E a razão foi apontada pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto: a incapacidade do Legislativo de, efetivamente, legislar. “O que se pede é um modelo mínimo de proteção institucional para evitar a discriminação. Essa proteção deveria ser feita pelo próprio Congresso”, afirmou.
Apesar da decisão do STF, para que os casais de gays e lésbicas brasileiros tenham seus direitos assegurados automaticamente, o Congresso teria que alterar as leis. A própria Constituição, no parágrafo 3º do artigo 226, estabelece que, “por efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. O que o Supremo fez foi ampliar seu conceito jurídico-constitucional para casais homoafetivos.
Isso significa que um casal gay pode ir hoje a um cartório solicitar o casamento civil? Pela decisão do STF sim, mas como não há lei prevendo isso, o cartório continua podendo se negar a celebrar a união. E lá vai o casal gastar dinheiro com advogados para levar o processo à Justiça onde, ao menos no STF, terá a vitória garantida. É caro e desgastante.
Ano passado, fui obrigado a interromper uma trajetória como correspondente do GLOBO em Washington, nos EUA, por falta de amparo legal à minha união. Em 2009, eu e meu parceiro, juntos há oito anos, decidimos fechar um contrato de união estável em cartório para que ele pudesse ter um visto de cônjuge. Mas a legislação sobre imigração nos EUA, de escopo federal, não reconhece as uniões de mesmo sexo como entidade familiar, ainda que alguns estados americanos o façam. O resultado foi que meu parceiro teve que se contentar com um visto de turista e passar por constrangedoras cenas de interrogatório de chicanos nos postos de imigração dos EUA, uma situação à qual eu jamais me submeteria (e, portanto, não poderia obrigar meu parceiro a se submeter).
Certa vez, ele teve que ouvir do funcionário da imigração: “Mas se o próprio Brasil não enxerga vocês como casal, por que os EUA deveriam enxergar?”. É lógico, mas é injusto porque o que eu vivo diariamente não é um contrato civil, como uma sociedade numa microempresa. É um casamento de fato, com todos os prazeres e aporrinhações de qualquer casal com um projeto de dividir a vida juntos. Os contratos de união estável têm menos força jurídica do que os casamentos no papel. Então que o Congresso faça como na Argentina, onde os parlamentares transformaram o casamento num processo civil aberto a qualquer casal, independentemente de sexo.
Mas o Congresso parece menos preocupado em discutir e elaborar as leis que o país precisa para entrar de fato no século 21 e mais em garantir cargos e verbas para suas curriolas. Eis a grande ironia: parlamentares religiosos e conservadores, eleitos por um público idem, gostam de apontar gays e lésbicas como “gente promíscua, disposta a destruir a instituição da família”. E, no entanto, o desejo de milhões de homossexuais brasileiros é justamente poder casar e constituir suas próprias famílias. Desejo que foi garantido nesta quinta-feira no Supremo, ainda que não automaticamente. A batalha continua.
fonte: Extra Online
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