domingo, 16 de janeiro de 2011

Para dogma “global”, público vê tudo, menos beijo entre homens

por Mauricio Stycer

Gilberto Braga e Ricardo Linhares alimentam o sonho de apresentar seis personagens gays em "Insensato Coração" sem chamar a atenção. É uma ambição que expõe o próprio preconceito dos autores e revela ideias preconcebidas do que o público quer ou pode ver na TV.

Na festa de lançamento da novela, no último dia 8, no Copacabana Palace, no Rio, questionei Braga sobre o tema. "Seis? Não contei." E acrescentou: "Devem ter contado também uma sapata que aparece na prisão com a Glória Pires".

Em "Autores - Histórias da Teledramaturgia", um livro, já esgotado, editado pela própria Rede Globo, Alcides Nogueira, autor de "A Próxima Vítima", entre outras novelas, faz uma observação sobre o casal gay de "Paraíso Tropical" (2007), a última criação da dupla antes de "Insensato Coração".

"Podia ser tanto um casal de gays quanto um casal de símios, porque não era nada. Não havia nada que mostrasse uma intimidade maior. E sei que o problema não era do Gilberto nem do Ricardo."

Casado há 35 anos com o arquiteto e decorador Edgar Moura Brasil, Braga responde no mesmo livro: "Quem reclamou foi a classe, não o espectador. Imagina se o espectador ia querer ver o casal em cenas de intimidade! É um tema muito complicado de se mostrar na televisão".

Igualmente entrevistado, Ricardo Linhares diz: "Nós queríamos mostrar um casal gay que não vivesse conflitos amorosos e fosse totalmente aceito no ambiente de trabalho, no círculo de amigos e vizinhos". Linhares diz ainda: "O público é conservador, mas os autores não são".

São discursos afinados, que reproduzem um misto de temor e reverência a esse dogma global segundo o qual o espectador, que as pesquisas creem conhecer, aceita ver qualquer coisa na TV, inclusive um transexual lambendo o rosto de um modelo no "BBB", menos um beijo entre dois homens.

E não são apenas Braga e Linhares que difundem o dogma. No mesmo livro, Antonio Calmon, autor da Globo desde 1985 ("Armação Ilimitada"), diz: "Não acho que a TV aberta seja um veículo para divulgar a luta dos gays. Ela foi feita para a família heterossexual comum".

Já Aguinaldo Silva, um dos fundadores do jornal gay "Lampião" na década de 70, diz no livro "A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo" (Panda Books, 284 págs., R$ 45,90): "Há telespectador da Globo que nem sabe que homossexualismo existe".

A afirmação se completa com o que me parece ser a melhor explicação para a estranha relação entre autores e personagens gays: "A Globo é muito responsável para deixar passar esse tipo de coisa. E acho que ela está certa ao agir assim. Não se trata de censura, trata-se de responsabilidade". Nem Bozó, o célebre personagem de Chico Anysio, falaria melhor.

fonte: Folha.com

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